Racismo Reverso

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Em resposta ao artigo “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo”, de Antonio Risério. Contém Ironia.

Imagem – Folha de São Paulo

Sou claro. Desculpem-me os que compartilham de minha etnia, acostumei com o uso desse termo, mas na verdade devo dizer com orgulho: sou Branco! É claro, há pessoas que me chamam de branco com intenções racistas; excetuando-se esses, orgulho-me de ser chamado de branco. Por esse mesmo motivo, usarei uma linguagem estranha ao nosso mundo. Falarei de modo europeu, com expressões e formas típicas da herança euro-brasileira. Ninguém se importa muito com a história de um euro-descendente em um mundo onde Etiópia, Congo e Gana dominam todo o comércio e a cultura, em um mundo guiado pelas mãos de Exú, onde os terreiros de candomblé surgem imponentes bem ao centro das cidades. Vim da Europa, genérica, onde não sabemos dizer o nome de sequer três países sem consultar o Soek.

Meus descendentes vieram a Pindorama no porão de navios branqueiros saídos diretamente do império de Serra Leoa. Determinando que novas terras fossem invadidas, o rei Zulu determinou que todo o capital humano da Europa fosse dizimado em nome da exploração de recursos naturais do “Novo Mundo”. Vodunces próximos ao rei garantiram, logo de início, que não havia o que se resguardar na exploração da mão de obra europeia: é que o claro, explicavam, é ser sem alma, portanto desprovido de humanidade e direito à bondade. O cristianismo, religião tradicional do nosso povo, pouco conhecida e tão atacada até hoje, era considerada seita do mal, provida de maus agouros.

Tempos depois da abolição da escravatura, e ainda não temos o que celebrar: cargos de liderança ainda possuem maioria preta. Ensinar cristianismo é até permitido e indicado, mas os pais de estudantes do Candomblé atacam professores e diretores a cada tentativa de minimamente tornar conhecida a cultura clara. Tudo foi construído sob uma matriz preta. Se invoco, para o que quer que seja, o sangue de Cristo, olhares já surgem em reprovação, às vezes até um acidental “credo”. Mesmo assim, tento resistir, e expor meu orgulho em ser cristão, em pertencer a uma religião tão genuinamente europeia.

Claros já foram objeto de estudo de muitos racialistas que concluiram que a cor clara é resultado de uma degeneração da raça preta. Já foi dito que a branquitude é sinal de ausência de espírito no corpo. Alguns países proibiram, durante muitos anos, casamentos entre pretos e claros. Aqui foi diferente: vendo a inevitável mistura, postularam a ideia de que, por ser um defeito,a cor clara tenderia a sumir ao longo dos anos, estando a miscigenação destinada ao inevitável e benéfico pretejamento da raça. Tal ideologia não sumiu sem deixar rastros: café, rosa, marfim, cinza, sardento… negando a própria branquitude, nosso povo se define em termos intermediários que parecem ter a cor preta como alvo, objetivo a ser alcançado.

Ainda somos a população mais pobre, a que mais vive nas favelas e a que menos dorme em mansões no centro (exceto como empregados muito mal pagos, isso quando aceitam contratar um claro sem medo de que ele roube algo). Somos os que mais morrem nas mãos dos policiais, os que mais são presos, os mais acusados e também a maioria nos bancos de reconhecimento facial. Reflexo da desigualdade, também somos os que mais morrem por COVID-19.

Sou julgado quando ouço Beethoven, Mozart, dentre outros que da Europa lançaram ao mundo sua arte. Beatles, The Dubliners, Skid Row… tudo é mal visto.Palavras como Nádega são consideradas vulgares, justamente por sua origem europeia. Preferem a formalidade da “bunda”. Palavras, sons, roupas, cultos, comidas… em tudo a branquitude é roubada. O preto tem, ao longo dos 360 graus em que olha, sua história marcada, e o trabalho que dizem seu, mas que sempre foi obra de brancos escravizados. A pobreza da comunidade clara é financeira, mas também de representatividade. O sistema injusto faz questão de dizer que em um filme com 500 atores “colocamos 1 (um) ator claro para combater o racismo!”. Um? Avançamos?

“Já pensou em trançar esse cabelo?”, ouvimos diariamente, sempre que ousamos exibir nosso cabelo liso completamente desamarrado. Tudo o que é claro é acidental, inferior, estéticamente ofensivo à cultura baseada na África. Todo mundo quer conhecer a África, poucos querem experimentar olhar para a miséria do continente Europeu, miséria essa que a própria África produziu.

Centenas de anos depois, dizem que o racismo acabou. Hoje, ao cometer um simples erro de endereço em minha entrega, meu patrão – obviamente preto – me demitiu aos gritos de “clarinho desbotado” e “rato”. Correndo para uma delegacia, atendeu-me outro preto, que ao ouvir meu relato, alegou não ser possível o registro da ocorrência por racismo, por falta de “elementos suficientes”. Após isso, dois policiais me revistaram à procura de drogas, e me aconselharam a não voltar a “mexer com essas coisas” (falando da tentativa em denunciar). Sim, racismo ainda existe. E como poderia ser real, no mundo Preto em que vivemos, falar em “racismo reverso”, supostamente cometidos por nós, claros, contra os pretos? Estaria a história também “revertida” para que tal crime histórico fosse possível?

“Racismo de claros contra pretos ganha força com identitarismo”, teve coragem de escrever o antropólogo preto Antonio Risério, convencido de que, além de evoluir completamente no combate à violência histórica contra os claros, já chegamos até mesmo a inverter o jogo. Fala ele em supremacismo claro, na mesma sociedade que, durante a Segunda Guerra Mundial, tentou criar a “Raça Pura”, completamente preta, para por fim eliminar a branquitude do mapa.

Antonio Risério, antropólogo preto, que acredita que pretos também sofrem racismo dos claros

Mesmo assim, com todas as dificuldades que enseja o pertencimento a uma minoria social – que é diferente de minoria matemática – constantemente diversas pessoas buscam convencer as massas de que o racismo não apenas acabou, mas já começa a inverter-se. Pensadores pretos, é claro. A nós, claros, ainda não é dado lugar de fala. Ao editor-chefe, preto também, não ocorreu que talvez um claro falasse com mais propriedade sobre racismo do que um preto.

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