Encarecimento de produtos básicos tem razões que vão muito além da pandemia

O slogan “quem tem TikTok tem tudo” me parece fazer cada vez mais sentido: arrastando pra cima como de costume, no hábito de conhecer novos rostos e modos de falar, esbarrei com um vídeo esclarecedor:
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estima que a insegurança alimentar moderada ou severa atinja 23,5% da população. A proporção subiu se compararmos a períodos anteriores, como o biênio 2014-2016, onde a estimativa falava em 18,3%. Atualmente, acredita-se que cerca de 7,5 milhões de brasileiros ficam sem comer por um dia ou mais.

CONSEA
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional foi criado em 1993 e extinto em 1º de Janeiro de 2019, um dos primeiros atos de Jair Bolsonaro. Ações promovidas pelo CONSEA foram reconhecidas pelas Nações Unidas, em 2014,como responsáveis por tirar o país do mapa da fome. Dois anos depois, o The Global Nutrition Reporter Stakeholder Group apontou o Brasil como protagonista em segurança alimentar e nutricional, e colocou o conselho dentre os motivos para esse protagonismo. Aqui no Brasil, chegou a ser apontado como responsável pela queda na mortalidade infantil. Foi nos seguintes termos que Itamar Franco decretou a criação do órgão:
Art. 2° Compete ao CONSEA propor e opinar sobre:
I – ações voltadas para o combate à fome e o atingimento de condições plenas de segurança alimentar no Brasil, no âmbito do setor governamental e não-governamental;
II – medidas capazes de incentivar a parceria e integração entre os órgãos públicos e privados, nacionais e internacionais, visando a garantir a mobilização e racionalização do uso dos recursos, bem como a complementariedade das ações desenvolvidas;
III – campanhas de conscientização da opinião pública para o combate à fome e à miséria, com vistas à conjugação de esforços do governo e da sociedade;
IV iniciativas de estímulo e apoio à criação de comitês estaduais e municipais de combate à fome e à miséria, bem como para a unificação e articulação de ações governamentais conjuntas entre órgãos e pessoas da Administração Pública Federal direta e indireta e de entidades representativas da sociedade civil, no âmbito das matérias arroladas nos incisos anteriores.
Decreto Nº 807, de 22 de Abril de 1993
Por que Jair Bolsonaro extinguiu um órgão de combate à fome? Segundo a Patrícia Jaime, nutricionista e doutora em saúde pública, em artigo publicado no Jornal da USP, a medida provisória 870 seria um agrado ao agronegócio. Na prática, foi revogada parte da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, estabelecida durante o governo Lula (2006), o que leva ao fim do CONSEA. Hoje, a competência de cuidar da política alimentar do país é do Ministério da Cidadania.
O episódio da Medida Provisória n. 870 é preocupante porque nega os êxitos da experiência brasileira; compromete a continuidade e aprimoramento da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; fragiliza a administração pública ao negar a participação social como elemento estruturante do Estado Democrático de Direito; induz um efeito cascata nos modelos de governança das políticas estaduais e municipais; e, não menos importante, deixa um recado que, para o Governo que se inicia, o exercício da cidadania parece só ter importância no momento do voto no processo eleitoral.
Patrícia Jaime, nutricionista e doutora em saúde pública
Na época, várias organizações, como o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e a FAO, reagiram negativamente ao desmonte do CONSEA. A então presidenta do colegiado, Elisabetta Recine, destacou a relação custo-benefício, “uma das melhores possíveis”, como argumento contrário à sua extinção.
CONAB
Diferente do CONSEA, a Companhia Nacional de Abastecimento, estatal criada em 1990, ainda existe. Ela é vinculada ao ministério da Agricultura, e dentre suas principais atribuições está a criação de estoques reguladores. A ideia é simples: o governo compra insumos básicos como café, arroz, trigo e feijão a preços baixos, quando esses estão com excesso de oferta. Se o preço começa a subir por excesso de demanda e falta de oferta, ou por situações inesperadas como o aparecimento de uma pandemia, os estoques são vendidos, regulando os preços. A estratégia vai de encontro à ideia de mercado livre defendida por Bolsonaro e Guedes.
O governo não tem estoque regulador para enfrentar momentos difíceis como o que estamos vivendo
Artigo do site Brasil de Fato
Quase no fim do primeiro ano de governo, a equipe de Bolsonaro anunciou a venda de 27 das 92 unidades armazenadoras da CONAB, afetando principalmente a agricultura familiar, prioridade no atendimento. O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itapuranga, Goiás, prenunciou o que vivemos hoje:
“A gente vai deixar de criar as coisas que tá criando, vai deixar de produzir. Tem frango, porco. Vai ficar mais caro pra quem compra a carne”
Heraldo Vieira, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itapuranga-GO
Nos últimos anos, os estoque estratégicos têm se mantido vazios, deixando a população dependente do preço que o mercado dita. Veja os exemplos da dobradinha básica do prato brasileiro:


Nesse cenário, se a opção de exportar trouxer mais lucros, assim será feito, como mostra o aumento de 25% no faturamento do agronegócio com as exportações em julho de 2021, com relação ao mesmo mês no ano anterior. A profecia de Heraldo Vieira ganha tons de comércio exterior: nunca se exportou tanta carne quanto agora (não por estar sobrando carne brasileira, é claro), e também nunca se pagou tanto por carne aqui dentro quanto agora.
Moeda
Que o dólar nunca esteve tão alto, não é surpresa pra ninguém. O que chama a atenção é que com a desvalorização do Real, países como a China tem investido pesado na compra de produtos brasileiros – China, aliás, que recentemente deixou de comprar carne brasileira por conta de suspeitas de doença da vaca louca (há quem diga que esse embargo irá baratear um pouco os preços de nossos açougues). Com as exportações em alta, ficamos desabastecidos aqui dentro.
As commodities (produtos em estado bruto) são negociadas no mercado internacional, portanto, atravessam o câmbio. Com o Dólar paquerando os R$ 6 reais, aumentam também as rações animais, o que joga pra cima o preço da carne.
Mas claro, nem tudo se resume a vender. Um bom exemplo é o trigo, cuja produção nacional é de apenas 30% do que consumimos. Com a moeda cada vez mais fraca, importar fica mais caro, diferença essa que é, claro, paga pelo consumidor final.
Assim como na alimentação, aqui a regra também é ter um pé-de-meia estratégico. As reservas internacionais do Brasil vêm se recuperando depois de uma forte queda em Abril de 2020:

Fonte: Banco Central do Brasil
Também nesse caso, explicam economistas, é a falta de intervenção por parte do governo que tem causado esta instabilidade. Mas há discordâncias: o ex-ministro da Fazenda Mailson da Nóbrega analisa que, independente do tamanho da interferência estatal no câmbio, é o clima político do país e suas incertezas o que mais pesa na hora de comprar e vender o dólar. Um exemplo recente é o do último 7 de Setembro: no dia seguinte aos ataques públicos de Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal, inclusive ameaçando desacato a decisões judiciais, a moeda subiu 2,83%, maior alta desde Junho de 2020. A chance de quebrar o compromisso de um teto de gastos, firmado por Temer, também é crucial nesse emaranhado, fazendo com que investidores desconfiem da responsabilidade fiscal do país. No fim das contas, ninguém quer investir em um país que, tempos depois, vê suas contas afundarem ou vê seu regime político ruir.
“O dólar é profundamente impactado pela confiança das pessoas. O investidor pode escolher colocar seu dinheiro em um lugar estável, que renda menos, ou em um lugar onde o presidente anuncia ruptura constitucional”
João Gondim, economista
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