Expediente que muitos consideram inocente, roubo da imagem causa transtornos frequentes para verdadeira dona do rosto

Larissa Gomes, nascida em Ribeirão Preto e vivendo em Cajuru, ambas no interior de São Paulo. Atualmente com 16 anos, criou seu perfil em 17 de março de 2021. O problema surge quando encontramos mais perfis com a mesma foto, atribuída a nomes diferentes. ‘Larissa Gomes’ é um perfil falso. Mas quem é a pessoa por trás do rosto roubado para produzir a fraude?

Eu conheci a real personagem desta história através de um dos seus ‘alter egos’, entitulado “Dandara Elizabety Trevisan”, suposta habitante de Mococa, 23 anos, ex-aluna da Escola Oscar Villares e da FAFEM e funcionária de “Netto”. Mesmo me oferecendo apoio político em comentários – sem que o motivo eu soubesse – achei por bem denunciar e alertar a vítima. Após longa pesquisa, cheguei ao perfil que apresentava continuidade nos stories, nas fotos… por coincidência, no mesmo dia que a encontrei ela falava sobre o tema.
Kássia Hellen Santos tem 23 anos e é estudante de Odontologia. Desde que tudo isso começou sua vida nunca mais foi a mesma: sofre ameaças por conta das ações de seus ‘outros nomes’ a ponto de preferir não divulgar sua cidade e estado. Homens a contatam frequentemente pedindo devolução de dinheiro obtido pelos ladrões de imagem. Das mulheres vêm as ameaças oriundas de diálogos entre seus maridos e o fake.
“Meus amigos próximos até falam ‘nossa , ta ficando famosa’, mas essa fama eu não desejo pra ninguém”
A estudante vive nas sombras: tem medo de sair na rua, evita postar fotos, para que não sejam utilizadas pelos mal-intencionados. Sente-se ‘ péssima, vendida’, principalmente quando o uso de sua imagem é para a promoção de conteúdo pornográfico.
A venda de ‘nudes’ violou direitos básicos de dignidade: a jovem cristã teve a sua imagem atribuída a fotos eróticas da qual não era protagonista.

A psicóloga Adna Monielle Carlos Araújo trata o caso como nada menos do que violência contra a mulher. Avaliando o caso à luz da hipersexualização do corpo feminino, objetificado por força de uma sociedade machista, preocupa-se com a proporção da carga emocional nestes episódios, passível de gerar pânico, problemas de autoestima e prejuízos de toda sorte na vida social.
“É indispensável o acompanhamento psicológico às vítimas de casos como estes.
[…]
A violência contra a mulher não deve ser tolerada, de nenhuma forma, de nenhum contexto, em nenhuma circunstância.”
Tudo começou há mais ou menos um ano: alertada sobre um ou outro por amigos, descobriu, em uma simples pesquisa, que eram vários os casos.
‘não adiantava denunciar 10 que aparecia 20’





Além de denunciar nas próprias redes sociais onde os perfis eram criados, Kássia chegou a fazer um boletim de ocorrência, pelo qual aguarda até hoje uma resposta da polícia. A demora não deixou de produzir efeitos: se no início tudo era reduzido ao roubo de imagem, agora os bandidos sequestram tanto nome quanto foto, além de seguir os amigos de Kássia.
‘estão meio que querendo se passar por mim mesmo’
A primeira ameaça
“Foi um senhor aqui no insta, me mandou msg dizendo que eu iria ver o que ele ia fazer, ele iria na delegacia se eu não devolvesse o dinheiro dele, aí ele até mandou o print da transferência que ele fez. Aí eu expliquei pra tudo sobre os fakes e ele mesmo assim não acreditava. Fiquei em choque, com medo, mas eu disse pra ele que ele poderia ir na delegacia, era um direito dele, mas que eu não podia fazer nada“
Os xingamentos continuaram por uma semana, até ser bloqueado. Já acostumada com a demora da polícia, mesmo desesperada, não registrou boletim de ocorrência sobre este caso.

Pedro Camargo, advogado e especialista em direito digital, não vê omissão por parte das autoridades: para ele, supõe-se uma natural demora na investigação policial, para posterior apresentação ao Ministério Público, mas ressalta a necessidade de acesso a este inquérito em particular para concluir se é o caso. Todavia, concorda com a ideia de ocultar quaisquer geolocalizações, e acrescenta a possibilidade de conversão dos perfil público em privado. A estratégia até foi testada, porém o número de solicitações para seguí-la foi tamanho que Kássia se viu obrigada a retornar o instagram a público e seguir na sobriedade.
Com a palavra, Doutora Andréa de Castro

“Embora as pessoas acreditem que a “internet é terra sem dono” tudo que se faz na rede fica registrado em algum lugar. Sendo assim os atos ilícitos cometidos on-line são caracterizados como crimes virtuais e/ou cibernéticos e punidos pela legislação brasileira.“
Foi o famoso caso da atriz Carolina Dieckman, em 2012, que alavancou a necessidade de maior proteção legal. Diante disso foram acrescidos ao Código Penal Brasileiro o artigo 154-A e 154-B (Lei nº 12.737, de 30 de novembro de 2012).
As evidências são essenciais. Dra. Andréa recomenda salvar todos os dados em todas as formas possíveis, especialmente os prints, registrar ata notarial em cartório para embasar a ação judicial. O auxílio de um advogado especializado, lembra, é sempre bem vindo.
O boletim de ocorrência pode ser registrado em qualquer unidade da Polícia Civil, já existindo em alguns locais a Delegacia de Repressão aos Crimes Informáticos (DRCI).
Até quando?

https://www.movimentomulheres.com.br/
” Quando eu li o relato logo me veio a mente, assim como um estalo, o lugar da culpa que ainda somos colocadas e a que sociedade não nos permite sair.
Para compreender esse histórico, podemos até citar dados.
Segundo dados da OMS somos o país com a maior taxa de pessoas com transtornos de ansiedade e o quinto em casos de depressão, sendo em sua maioria mulheres.
Segundo dados compilados no Dossiê Violência contra Mulheres do Instituto Patrícia Galvão, a cada 2 horas uma mulher é assassinada e a cada 2 minutos ela é espancada.
E com isso, eu me pergunto: o que nos cabe? O estigma da psicopatologia ou do cemitério?
E o que é ser mulher afinal?
Representações sociais e toda uma cultura que atravessa a nossa história?
É fato que a mulher conquistou cada vez mais espaço e maior liberdade. Em contrapartida, o dispositivos de opressão também se atualizaram.
Uma vez li uma frase da Safioti que dizia: “mulheres são treinadas para sentir culpa. Ainda que não haja razões aparentes para se culpabilizarem, culpabilizam-se”. (2015).
Nos dizem o que como fazer, falar, vestir, usar e agora postar. O poder disciplinar, que produz limitações ou obrigações, que bem Focault nos dizia em sua obra Vigiar e Punir, se faz mais sofisticado. Como o poder da Internet, passamos disseminar os corpos e crenças de mulheres de forma frequente e instantânea. E o pior, Viraliza, né?
Esses novos dispositivos se tornam tão subjetivos, que invadem nossos espaços mais comuns: é uma conversa com um amigo, é uma postagem no Instagram. Se torna real. E aquela realidade é tao naturalizada, que soa quase como uma verdade para nós mesmas.
Essa uma das questões que mais me aparece no consultório. Pergunto para elas: Quanto de você tem em uma escolha? Quanto de liberdade tem em sua escolha? Quanto de opção tem em sua escolha?
E como consequência desse processo encontra-se o corpo. Este que faz parte da identidade do sujeito, a qual expressa sua realidade e concepções.
Diante disso, essas crenças e estigmas vão atravessando nao somente o nosso corpo, como a nossa saude mental, interferindo na sua identidade e autoestima.
E ainda nos dizem: “empodera-se mulher”. Ainda entendo isso tudo como processo. Quando entendermos essa cultura do patriarcalismo sofisticado e suas novas formas de opressão, aí sim, poderemos promover suporte a cada mulher, respeitando sua história de crenças, para que ela possa construir uma autonomia e um autosuporte com a sua saúde mental possibilitando relações mais saudáveis.
Para terminar deixo de reflexão uma música do Tiago Iorc chamada Desconstrução.
Quando se viu pela primeira vez
Na tela escura de seu celular
Saiu de cena pra poder entrar
E aliviar a sua timidezVestiu um ego que não satisfez
Dramatizou o view da rotina
Como fosse dádiva divina
Queria só um pouco de atenção
Mas encontrou a própria solidão
Ela era só uma meninaAbrir os olhos não lhe satisfez
Entrou no escuro de seu celular
Correu pro espelho pra se maquiar
Pintou de dor a sua palidez
E confiou sua primeira vezNo rastro de um pai que não via
Nem a própria mãe compreendia
O passatempo de prazeres vãos
Viu toda graça escapar das mãos
E voltou pra casa tão vaziaAmanheceu tão logo se desfez
Se abriu nos olhos de um celular
Aliviou a tela ao entrar
Tirou de cena toda a timidezAlimentou as redes de nudez
Fantasiou o brio da rotina
Fez de sua pele sua sina
Se estilhaçou em cacos virtuais
Nas aparências todos tão iguais
Singularidades em ruínasEntrou no escuro de sua palidez
Estilhaçou seu corpo celular
Saiu de cena pra se aliviar
Vestiu o drama uma última vez
Se liquidou em sua liquidezViralizou no cio da ruína
Ela era só uma menina
Ninguém notou a sua depressão
Seguiu o bando a deslizar a mão
Para assegurar uma curtida“
Dados escassos
A pesquisa pelo termo ‘perfil falso’ retorna 714 documentos na base de dados do Superior Tribunal de Justiça e 102 no Supremo Tribuna Federal. Procurado, o Conselho Nacional de Justiça alegou não possuir estatísticas sobre processos envolvendo perfis falsos no sistema judiciário.
O questionamento “por que Kássia Hellen?” é comum e persistente entre nós dois. Apesar de tudo, a mulher mantém-se forte: ‘é algo que tento levar, como se não tivesse jeito e eu tento conviver’.

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